De certa forma, todos, de uma maneira ou de outra, somos cuidadores. Na realidade, creio que essa é uma das premissas básicas de desenvolvimento da espécie humana, a necessidade de cuidarmos e de sermos cuidados, de criar ligações e conexões emocionais que nos permitam preservar-nos e doarmo-nos uns aos outros. Talvez esta seja uma das mais primárias, mas também belas, bases da natureza humana, mas é, sem dúvida, uma das que mais trabalho em nós requer.
Cuidar é amar, é respeitar, é compreender e aceitar, é doarmo-nos ao outro, auxiliando-o no seu limite. Isso implica encontrar o outro frágil, com dor, em sofrimento, vulnerável, e, por isso, cuidar é, ou implica, sem dúvida, o maior e mais profundo respeito por esse outro, acolhendo-o, acarinhando-o, dando-lhe colo, apoio, ouvindo-o. Maior parte das vezes, cuidar é apenas isso, dar espaço para que o outro exista para alguém, para que, perante um problema ou uma limitação, ele não seja transparente, inexistente, mais um no meio de tantos que vivem outros tantos (e às vezes maiores) problemas.
Se tudo isto é verdade perante o outro, é também uma insofismável realidade e premente necessidade perante nós mesmos. Na verdade, não podemos ser cuidadores, no mais belo e profundo sentido da palavra, do outro, sem o sermos, primeiro, de nós mesmos. Esta é uma das mais difíceis tarefas que temos, a de transpormos tudo aquilo que é tão simples de fazer para com os outros para nós mesmos.
Cuidar de nós mesmos implica reconhecer a nossa dor, o nosso sofrimento. Implica sentirmos em nós a realidade de nós mesmos, e tal também significa que precisamos de ser verdadeiros connosco, reconhecendo e aceitando o que vivemos, o que sentimos, o que passamos. Isso pede também que saibamos reconhecer os nossos próprios limites, que compreendamos a nossa finitude enquanto seres, nas nossas mais diversas dimensões. Esta é uma das grandes dificuldades que temos, pois crescemos num mundo onde a fragilidade ou a vulnerabilidade são vistas como fraquezas, como defeitos a eliminar das nossas estruturas. Esta é a voz do ego que continua a fazer o seu trabalho, o de preservar a nossa sobrevivência. Contudo, não é ele o inimigo, não é ele que precisa de ser abatido, talvez nem sequer exista tal figura de vilão nesta história.
O trabalho de cuidar de nós mesmos, de forma a podermos ser verdadeiros cuidadores, passa por nos conhecermos, pois só dessa forma daremos segurança ao ego para que ele possa continuar a fazer o seu maravilhoso e essencial trabalho. Conhecermo-nos implica olharmos a nossa dor, as nossas feridas, trabalhando para curá-las, e esse é um trabalho, fazendo a reflexão no cuidado para com o outro, que pede muito amor, muita compaixão, muita dádiva e entrega. No entanto, também por grandes restrições, muitas delas vindas através da família e da sociedade, olhamos este parar, este focar-nos na dor, na ferida, como uma manifestação de vitimização e, como tal, fugimos dela.
Não podemos curar uma ferida sem a observar e compreender o que ela necessita, sem lhe dedicarmos tempo para que ela possa ser limpa, cicatrizada e curada. Se virmos a dedicação a nós mesmos como vitimização, então recusamo-nos liminarmente na nossa condição humana e estamos perante uma necessidade premente e absoluta de trabalhar o amor-próprio, o respeito, a aceitação, principalmente pelo facto de não aceitarmos algumas (ou todas) questões relacionadas com a nossa própria encarnação.
Cuidar de nós é ouvirmos o nosso corpo, a nossa mente e o nosso coração, pois essas são as portas e as chaves para conseguirmos ouvir o nosso espírito. Este é o trabalho que fazemos com o outro, quando dele somos cuidadores. Este é o trabalho que é urgente fazermos connosco próprios, sob pena de, na verdade, nos estarmos a autodestruir. Quando cuidamos do outro sem fazer esse mesmo trabalho em nós, estamos apenas a projectar no outro uma necessidade que existe em nós, como uma forma de purgar, como uma penitência duma culpa que sentimos, consciente ou inconscientemente, na nossa alma. Nesse caso, apagamo-nos, anulamo-nos, devotamo-nos numa busca egoísta, ainda que não a compreendamos dessa forma, de resgate de nós mesmos, dum perdão do qual nem temos percepção.
Contudo, quando cuidamos de nós, quando nos ouvimos, estamos a dar espaço e existência a nós mesmos, estamos presentes na nossa própria vida, não sobrevivemos – vivemos –, e, dessa forma, temos a capacidade de dar ao outro não as nossas necessidade, mas sim a nossa essência, a nossa verdade, de forma a levar até ele uma luz que floresce na nossa alma, que se doa sem se perder, que, na verdade, se amplifica de cada vez que, conscientemente, nos doamos. É esse o cuidado que exprime amor, da forma mais bela e profunda, a da partilha, a da integração, a da aceitação, aquela que é dada e é devolvida, que nesse percurso se expande e se torna ainda mais sublime, que é o toque do divino nas nossas vidas.
Leonardo Mansinhos
Muito obrigada por este texto fantástico!
Tem o dom de colocar em palavras, sentimentos que também são meus.
Muito obrigado querida Margarida! Um enorme beijinho, Leonardo