Estes dias, por tradição, e bem inseridos na energia do signo de Escorpião, sublimam um pouco o véu que separa o mundo dos vivos do outro mundo, aquele que os que partem antes de nós já conhecem. Ainda que seja tradição, a verdade é que a energia destes momentos pede um mergulhar numa profundidade do nosso ser que ultrapassa o tempo presente, que ultrapassa o nosso corpo físico, mental ou emocional, que nos localiza em quem somos hoje, sim, como sempre, mas recorda-nos também que só o somos, porque, antes de nós, outros prepararam o caminho, outros se predispuseram a vivenciar o seu tempo, a cumprir a sua etapa e a, directa ou indirectamente, trazerem-nos até esta Terra.
Por isso, este é um tempo de recordação e celebração, mas, acima de tudo, é o tempo de honrar a nossa ancestralidade, algo que, muitas vezes, não só esquecemos, como não compreendemos o sentido. Não se trata, na verdade, de pais ou mães, avós ou bisavós, trata-se sim de raízes, de memórias, de origens, o que ultrapassa, ou assim deveria ser, as vivências e experiências pessoais, boas ou más.
Em cada um de nós reside a energia de todos aqueles que antes de nós, na nossa linearidade, cá estiveram. Os seus genes, misturando-se e fundindo-se, geração após geração, criaram aqueles que hoje carregamos. Da mesma forma, a sua energia, o seu trabalho, o seu legado, pauta cada célula do nosso corpo, cada partícula da nossa existência. Também nós, de alguma forma, nos propusemos a trazer toda essa carga para a trabalhar, não só no sentido pessoal e individual, mas também colectivo, geracional, deixando à nossa frente um legado.
Honrar a nossa ancestralidade não é um acto de tradição religiosa, mas sim de vida. Não passa por levar flores ao cemitério no dia de finados (que muitos confundem com o Dia de Todos os Santos), nem sequer por celebrar seja que tradição for. Honrar a nossa ancestralidade é honrar a nossa própria vida, mas estes dias servem para nos recordar disso, para lembrar a morte como fonte de vida, para trazer memórias, para aquecer o coração com elas, mas ter presente e consciente que este tempo é o nosso e que cabe a cada um de nós, verdadeiramente, vivê-lo.
Amar e honrar os nossos ancestrais, até mesmo os nossos pais, não significa colocarmos de parte as relações que tivemos ou temos com eles, não se trata de esquecer ou apagar actos e vivências, pois isso apenas ocultaria e colocaria uma máscara numa carga emocional pesada e, muitas vezes, negativa, que, um dia, mais cedo ou mais tarde, viria ao de cima com muito mais força e poder. É preciso amá-los, sim, honrá-los e respeitá-los, sem dúvida, mas pelo facto de serem os responsáveis pela suprema tarefa de nos trazerem até à vida, mesmo que nada mais tenham feito para além disso.
Quando amamos essa parcela de toda a nossa ancestralidade, pai e mãe, avós paternos e maternos, bisavós, trisavós e todos os que estão para trás desses, não amamos as pessoas que eles foram, pois isso está carregado de escolhas, atitudes e personalidades, de vivências felizes, actos de amor, mas também de erros e falhas, de violência e dor. Quando o fazemos, quando amamos a parcela desses seres que nos deu a vida, amamos a nossa própria vida, honramo-la e respeitamo-la, compreendemos o quão importante, essencial e valiosa é essa primeira e essencial dádiva. Sem o fazermos, dificilmente mudaremos as bases do nosso ser ou desbloquearemos muitas questões e padrões.
Não é fácil nem simples fazer este trabalho interno, distinguir e separar a parcela do ser que representa a nossa vida de tudo o resto, que é muito mais visível, muito mais intenso e muito mais forte, principalmente porque estamos habituados a olhar primeiro para fora, a dar mais importância ao que está no exterior. Contudo, este trabalho implica um olhar prioritário para dentro, para podermos olhar e reconhecer a vida em nós, para compreender que ela só foi possível pelos encontros e desencontros de todos os que antes de nós cá estiveram e estão, para entender que é graças a eles que existimos e que a eles devemos essa parcela, talvez a mais importante de todas.
Valorizar a nossa vida honrando e amando a nossa ancestralidade é ultrapassarmos a dimensão terrena da existência, é tocar o véu que nos separa de muitos deles e reconectarmo-nos com o seu legado, com a sua existência, com as memórias e com os ensinamentos, com as nossas raízes, com a sabedoria ancestral que passou de geração em geração. Acima de tudo, é também reconhecermo-nos na presença que somos hoje na Terra, recordarmo-nos da beleza da vida, resgatarmos tudo o que eles nos deixaram e dar o nosso próprio cunho, adaptar e reestruturar, porque, na verdade, nós não somos a nossa ancestralidade, mas cada partícula de energia deles está em cada uma das nossas células, composta numa nova vivência, a nossa, que se propôs a fazer diferente, a limpar, a corrigir, a evoluir.
Sem ressoar a nossa ancestralidade em nós, honrando-a e amando-a, não poderemos nunca aceder à nossa verdadeira essência, à Centelha Divina que nos habita, ficará sempre algo incompleto, pois todos estamos interligados num mesmo caminho, cada um com o seu propósito individual, mas seguindo um trajecto comum, uma vivência evolutiva partilhada que, também ela, faz parte do nosso percurso. Por isso, neste tempo que vivemos agora, é preciso honrar esses que antes de nós cá estiveram, honrando-nos a nós também e em primeiro lugar, é preciso amá-los na sua essência, no seu legado, amando-nos na vida que nos habita. Assim, permitimo-nos ser como a árvore na floresta, que foi um dia semente nascida doutra árvore da sua espécie, que rasgou a casca e criou raízes fortes, pois sem elas não poderia crescer nem sobreviver, que cresceu em direcção à luz para ser a árvore que se propôs a ser e, também ela, ser a fonte de nova vida, mais aperfeiçoada e evoluída, mantendo viva e eterna a sua energia e o seu papel neste planeta e nesta dimensão.
Leonardo Mansinhos