Há poucos dias, durante o almoço, decidi ler um artigo que tinha guardado numa aplicação, um texto cujo título logo me chamou a atenção, precisamente por conter algo que sinto e acredito em mim há algum tempo. O autor, duma forma bem simples, directa e sem muitos rodeios, escreve que, para ele, o propósito da vida não é ser feliz, mas sim ser útil, algo que desdobra ao longo de um texto muito acessível, na ideia de que, mais do a felicidade como uma busca, a vida na Terra compõe-se de actos, actos perante nós e perante os outros, que dão sentido, que permitem criar algo que pode melhorar a nossa vida e a dos que nos rodeiam, fazendo com que, de certa forma, caminhemos para sermos felizes.
Defendo esta ideia há algum tempo, mas sinto que é necessário ir ainda mais longe, nomeadamente nos tempos que correm. Não acredito na felicidade como um fim, como um objectivo ou propósito, até porque não faz sentido, na vivência terrena, estar numa perpétua e plena felicidade. Essa existência, nesse formato, era mais uma das muitas máscaras que teríamos colocadas. A vida neste plano é mesclada, rica e transformadora, composta de inúmeros sentimentos e emoções que precisamos de integrar, de permitir fluir, como uma paleta de cores que tinge uma tela erma e árida.
No entanto, quando permitimo-nos ser nós mesmos e dar voz a toda a existência que há dentro do nosso ser, começamos a criar, a gerar, a potenciar tudo o que somos. Esse acto criador necessita de alma, e a alma necessita de um propósito, de uma orientação e de um foco, algo que nos permita encaminhar o nosso ser na visão de sermos maiores do que nós mesmos, de acendermos a chama divina em nós e, dessa forma, activar tantas outras à nossa volta. No fundo, a única coisa que nos é pedida é que toquemos corações, que sejamos, como dizia Jung, uma alma que toca outra alma.
Acender a nossa centelha significa sermos capazes de trazer ao de cima quem nós somos, sem máscaras ou barreiras, sem medos ou dúvidas, em plena aceitação de tudo o que somos. Isso significa compreendermos que precisamos de lidar com a nossa totalidade, com o belo e com o medonho, com a luz e com a sombra. A vela, quando acesa, tem a capacidade de iluminar uma sala, mas, para o fazer, tem de revelar também muitas sombras à sua volta. Da mesma forma, ir buscar o melhor e o mais belo de nós, aquela coisa quase idílica que muitas vezes ouvimos e lemos, implica, necessariamente, abraçar o que é menos bonito, os medos, os monstros, as dúvidas e os receios, as falhas e as frustrações, integrá-las com muito amor, e permitir que elas sejam o barro cru, rústico e disforme que, depois de muito trabalho, dará origem a uma obra de arte única.
Acredito que o grande propósito da vida é trabalharmos a nossa essência, na sua totalidade, aceitando-nos na imensa dimensão que existe em nós, de forma a poder criar algo que, de certa forma, possa ser uma semente de nós mesmos, perpetuando-nos no que é o legado maior que temos para deixar. Muitas vezes, o medo da falha, do erro, de cair, mascarado de responsabilidade, de imponente obrigação, de um conjunto de verdades e de conceitos que nos foram colocados, na verdade, bloqueia-nos e impede-nos de deixar a nossa essência revelar-se. No fundo, todos somos como uma semente que se pode manter intacta durante anos e anos, mas que, para germinar e dar frutos, tem de ser plantada na terra e alimentada com água.
Terra e Água são os dois elementos femininos, receptivos na sua natureza, que se contrapõem ao Fogo e ao Ar, os elementos masculinos, activos e direccionados. A semente, ao necessitar dos elementos femininos para germinar, para que o seu potencial se revele, mostra-nos que para podermos, verdadeiramente, revelar o que existe em nós, necessitamos de nos alimentar, de aprender a receber, de viver emoções e fazer de todo esse processo, em toda a sua magnitude, em toda a dimensão humana, a base fértil da nossa criação, do nosso legado.
Os tempos que vivemos têm-nos trazido profundos pedidos de vivência de energias femininas e receptivas, um poderoso apelo à empatia, ao amor por nós mesmos, ao amor ao próximo, à compaixão, à dádiva, ao afecto e ao carinho. No entanto, esse apelo e essa vivência são-nos desconfortáveis e solicitam-nos muito trabalho interior, e como vivemos numa sociedade construída sobre conceitos de autossuficiência e sobrevivência, isso faz com que, terrenamente, activos processos mais reactivos e egocêntricos, levantemos barreiras e defesas, máscaras e capas, derivados do medo de perdermos algo que, na verdade, nunca foi nosso. A prova disso é o próprio mundo em que vivemos, as problemáticas internacionais, políticas, económicas e estratégicas, que nos mostram tudo o que precisamos de trabalhar.
No fundo, basta ver a necessidade urgente de amor e humanidade que o mundo tem, de colo, carinho e afecto, de mais seres que sejam capazes de serem criadores, geradores de luz própria, que acendam outras chamas, que toquem outros corações, não por obrigação ou por interesse, mas porque é isso que o seu coração lhes pede. Dessa forma, compreenderemos que o foco da vida não é a tal felicidade, que ela não é um objectivo, mas sim um modo de vida, directamente conectado à gratidão, à capacidade de ser humano, de estender a mão e amar o próximo, respeitando-o na sua integridade e unicidade, não como tolerância, mas sim como uma alma que se conecta com outra, um coração que toca outro coração e que descobre em si que o amor que dele brota é inesgotável e que cresce, precisamente, quando se liberta e se doa.
Leonardo Mansinhos