Uma das grandes capacidades do ser humano é a de se adaptar ao meio em que vive e está inserido, às circunstâncias que o rodeiam e aos processos que lhe são colocados. Foi esta capacidade que nos tem feito sobreviver neste planeta e, de certa forma, para o bem ou para o mal, ser a espécie dominante. A capacidade de nos adaptar-nos construiu-nos em tudo o que somos, possibilitou-nos o desenvolvimento cognitivo, intelectual e emocional que temos e, acima de tudo, conferiu-nos poder.
Contudo, se esta é uma característica que tem uma face bastante positiva, também é verdade que ela tem um lado profundamente perverso e difícil de ser trabalhado. Se nos conseguimos adaptar às condições e, através delas, superar questões e problemas, isso também é verdade no sentido inverso, na nossa capacidade de vivermos e nos habituarmos a coisas muito más e complicadas, aprendendo a conviver com elas e a senti-las como parte das nossas vidas. Para tal, entramos em processos automáticos que nos permitem, de alguma forma, deixar de sentir, desactivando esse estímulo que o nosso cérebro tem, esse alimento de mudança e transformação que são as emoções.
Isto é verdade quando temos situações difíceis que se prolongam no tempo e sobre a qual temos reduzido mecanismo de controlo, tal como a situação que estamos a viver, do ponto de vista mundial, há largos meses. Nessas questões, accionamos um mecanismo de sobrevivência puro e instintivo, o nosso ego na sua dimensão mais básica, orientando-nos para a diminuição do nosso lado empático e emocional, dirigindo-nos por fim, para uma falta de sentido de humanidade e responsabilidade, elevando um egoísmo latente, esquecendo a importância de algo tão básico como a sacralidade da vida humana.
Os nossos mecanismos de sobrevivência surgem desregulados quando estamos desconectados da nossa essência, da nossa verdadeira humanidade. Quando assim é, a autopreservação é o único caminho, mas o seu custo é a profunda perda de identidade. Foi esse o grande amplificador dos problemas que o mundo já viveu, quando assistimos a barbáries e ficámos impávidos à espera de que tudo voltasse ao normal por si mesmo, quando nos desresponsabilizámos do nosso papel no mundo, na sociedade, e nos adaptámos ao mal, em vez de construir e gerar o bem.
O mundo em que temos vivido foi construído, e hoje podemos ver isso com imensa facilidade, sobre uma desconexão de nós mesmos, que nos obrigou a adaptar-nos ao pior que o ser humano pode ter em si, à crença de que o sofrimento e a culpa são merecidos, que a dor, em vez de um caminho, é uma punição, que não podemos ser felizes nem ter prazer, que tudo é uma obrigação. Neste pressuposto, deixamos de procurar a nossa felicidade, aceitamos profundas vivências de escravidão e de castigo, permitimos o bloqueio e castração das nossas capacidades, adaptamo-nos ao mal, achando que ele é o bem, esperamos um messias, um salvador.
Assistimos hoje, e desde há alguns anos, a uma desconstrução profunda do mundo, da sociedade, onde cada um de nós é chamado a ver as suas sombras, onde cada vez se torna mais difícil virar a cara às questões que nos rodeiam, pois esse simples acto mostra-nos muito de quem estamos a ser. Com toda a situação que ainda vivemos, e que ainda tem tanto pela frente, quando estamos desligados de nós mesmos, começamos a assumir que o normal é o que estamos a viver e desresponsabilizamo-nos, culpamos os outros, reagimos sem noção de que, do outro lado, está um ser humano, tal como nós. Isto é verdade para as questões mais elaboradas do momento, mas também das questões básicas do nosso ser e das nossas relações, perdemos a empatia e a compaixão, cristalizamos à nossa volta um halo negro de dor, revolta e mágoa.
Hoje, mais do que nunca, é preciso um mergulho profundo dentro de cada um de nós, um mergulho de amor, de cuidado, de colo e afecto, pois este é o tempo em que o que é mais sombrio e doloroso em nós está a vir ao de cima, com a urgência de ser trabalhado, amado e curado. Hoje, mais do que nunca, é preciso recordarmo-nos que a humanidade evolui por processos de compreensão mútua, por respeito e compaixão, por mãos unidas e não por separatismos. Contudo, tal não é possível enquanto a falta de respeito, a falta de amor, a guerra e a revolta existirem dentro de nós mesmos, pois tudo o que vemos à nossa volta é o espelho de quem somos de forma global.
Quando conseguimos vibrar em amor, conseguimos trazer o melhor do que é ser-se humano, conseguimos compreender o verdadeiro propósito de uma vivência na Terra. No entanto, para tal, precisamos de nos recordar que é a esperança que nos pode dar alento e mover, capitalizada por uma fé implacável e irredutível, não num deus qualquer, mas sim em nós mesmos, primeiro individualmente, depois enquanto este todo que é a sociedade e a humanidade. É desta forma que nos recordamos do que é ser humano, da fonte inesgotável que é o amor e de como ele é um bálsamo que, quanto mais damos, mais floresce em nós.
É desta forma que nos lembramos que se temos a capacidade de nos adaptarmos às coisas difíceis, e que tantas vezes conseguimos fazer milagres de dentro desses tempos, se nos conseguirmos adaptar a coisas boas, então seremos capazes de expressar o divino em nós. Para tal, precisamos de aprender a cuidar de nós, a impor-nos limites, a definir o nosso espaço, a dizer “não” sempre que necessário, a ajudarmos quem precisa, a darmos um pouco de nós e a colocar um sorriso por onde passamos, pois é essa expressão de vida que a Terra e o ser humano mais do que necessitam neste instante.
Leonardo Mansinhos