Costuma-se dizer que Deus escreve certo por linhas tortas, mas ainda que seja um dito tradicional e popular, que usamos quando algo não corre tão bem, como uma espécie de consolação, a verdade é que é difícil para nós integrar e compreender os momentos mais desafiadores da nossa jornada. Se os acontecimentos mais simpáticos e, digamos, bons são fáceis de viver, são vistos com um coração aberto e feliz, os difíceis, os maus, os que nos fazem tropeçar e nos colocam escolhas difíceis, muitas vezes recusamos e sentimos como mais um problema, mais um tropeção, mais uma queda, recusando-nos a vê-los como são e, em suma, a potenciarmos a gratidão para com eles.
A gratidão é um bálsamo que, não justificando coisa alguma, auxilia-nos a elevar uma experiência, uma vivência, uma situação. A gratidão é um alimento poderoso, que, perante as simples coisas do dia-a-dia, nos dá alento para ir mais longe e, perante as mais dolorosas, cura e cicatriza as feridas. Por isso, facilmente, incentivamos quem vive momentos difíceis a trabalhar a gratidão, a tentar compreender o lado mais luminoso dum problema. Muitas vezes, tal é feito de forma errada, sem compreender que não o podemos fazer sem viver o problema, que a gratidão não pode servir como uma máscara bonita que pomos numa coisa feia, que ela tem de ser profundamente vivida nos nossos corações.
Se cada um de nós fizer um pequeno exame de consciência vai compreender que maior parte das coisas que vivemos, literalmente, em termos de gratidão, passa-nos ao lado. Como bons humanos que somos, tomamos o que é simpático como adquirido e esquecemo-nos que essas coisas tiveram um caminho que levou até elas, que esse caminho, por vezes, foi duro também, e que, por isso, também elas merecem a nossa gratidão. Não nos recordamos, grande parte de nós, de olhar a vida, o simples acto de respirar, de sentir o coração bater, com a devida gratidão. Não nos recordamos de sentir o levantar da cama e ver o mundo lá fora, as plantas, os animais, com a intensa gratidão que lhes é merecida. Pelo contrário, levantamo-nos e entramos no ritmo alucinante, se estiver a chover reclamamos, se for segunda-feira reclamamos, esquecendo que todos os dias, todos os momentos, todas as situações, nos são dadas com a mesma intenção: viver.
Quando não somos capazes de ser gratos pelas mais pequenas coisas, alimentamos em nós a sobrevivência, não nos sentimos merecedores de mais, de vida, de prosperidade, de alegria, paz ou amor. Se não somos capazes de ver que abrir os olhos a cada manhã é uma dádiva de vida, como seremos capazes de reconhecer devidamente a porta que nos é aberta no caminho? Da mesma forma, se não somos capazes de ver nas mais pequenas coisas a sua essência, então não poderemos olhar para as difíceis e desafiadoras e sentir a verdadeira razão da sua passagem ou existência nas nossas vidas. Dessa forma, quando tentamos sentir gratidão pelas coisas menos boas, na verdade, apenas mascaramos uma realidade, apenas tomamos um comprimido para aliviar uma dor, sem a tratar e sem entender porque ela surgiu e qual o seu propósito.
A gratidão é um bálsamo de cura nas nossas vidas, mas, para tal, temos de nos permitir viver cada situação como ela é, libertar as emoções que nela estão contidas, encarar a realidade, sentir a revolta, a mágoa e tudo o que de mais negro poderá existir. Como uma ferida que temos, não podemos pôr um creme sem antes a limpar e desinfectar, não podemos simplesmente por um penso quando a ferida está cheia de pus e de sujidade. Só depois de a limpar é que podemos colocar o medicamento e o penso, e da mesma forma, só quando conseguimos ver, sentir e nos confrontarmos com o que existe em nós é que somos capazes de poder agradecer à mais dura e difícil situação que é vivida, compreendendo o seu papel no nosso caminho, o enorme degrau que ela representa e que nos eleva, a gigantesca porta que ela nos abre. São as mais difíceis batalhas as que nos permitem conquistar os maiores tesouros, mas se nelas vivermos imbuídos em raivas, mágoas e revoltas, e se esses mesmos sentimentos mascararmos e escondermos, tornando tudo perfeito e luminoso, então viveremos a ilusão de termos alcançado a aprendizagem e vamo-nos convencer da gratidão, em vez de, verdadeiramente, a sentir nos nossos corações.
Leonardo Mansinhos