Quando vivemos tempos de um certo travão, uma paragem, externa, em que parece que nada acontece, em que há uma sensação de que a vida está em pausa, somos, na verdade, convidados a olhar para dentro de nós, a compreender que há um enorme movimento que existe, sim, mas no nosso interior. Na verdade, nada do que existe exteriormente acontece sem uma inicial construção interna, o que nos leva a reflectir sobre aqueles momentos em que parece que a vida nos escapa entre as mãos, em que perdemos o controlo de tudo, em que nada se passa como tínhamos definido.
Como uma semente que apenas dentro do solo, alimentada com água e o calor do sol, consegue germinar, criando primeiro as raízes, que se aprofundam e lhe dão estrutura, e só depois elevando-se para o sol, rasgando a terra e mostrando-se, também as situações nas nossas vidas primeiro geram-se internamente para depois se manifestarem. É esta percepção que nos permite ver que, na verdade, somos os grandes construtores da nossa vida, mas que precisamos de tomar consciência de quem somos e do caminho que estamos a percorrer.
O momento em que vivemos direcciona o nosso olhar para dentro, através duma paragem que nos mostra uma face diferente daquela que conhecemos de nós mesmos. Da mesma forma, estes são tempos em que o que está mais profundamente guardado vem ao de cima, onde temos obrigatoriamente de lidar com alguns fantasmas, pois o nosso movimento está mais contido ou mais restrito. Ao fazê-lo, temos a capacidade de perceber, se assim quisermos, pois é sempre mais fácil continuar na ignorância, com a cabeça dentro da areia, a que nível estamos a ser os verdadeiros obreiros da nossa vida, em que medida nos responsabilizamos pelo caminho a percorrer, tornando-nos construtores constantes e efectivos da nossa realidade.
Uma das grandes verdades que a sabedoria das plantas e das árvores nos mostra é que uma semente tem em si a consciência intrínseca do seu potencial, permitindo-se, quando tem essa “oportunidade”, manifestá-lo. Ela manifesta-se como é, pelo que é, não buscando ser outra coisa qualquer. É esse foco, que obviamente é vivido numa consciência completamente diferente da nossa, humana, que a leva a ser uma representação do divino na Terra, mesmo nas circunstâncias mais agrestes e inóspitas. O nosso nível de existência, a consciência humana que tem, com maior ou menor noção, a elevação e o aperfeiçoamento, obriga-nos a integrar uma densidade manifestada pelo ego que contém o Espírito, mas ao mesmo tempo permite-o manifestar-se através da matéria. Esta interacção é difícil e dolorosa, pois leva-nos a essa dualidade da luz e da sombra, algo que, tantas vezes nos atormenta e nos desvia.
Na construção do nosso ser existem um conjunto de vivências, acontecimentos, bases, estruturas e raízes que nos definem e nos dão forma. Como vivemos em dualidade, elas mostram-nos as várias faces do que nos rodeia e de nós mesmos, espelham-nos e revelam-nos, algo que nem sempre é bonito nem agradável de percepcionar. Muitas vezes, esse espelho vem daqueles que nos são mais próximos, daqueles até dos quais provimos, que nos geraram, nos deram a vida e nos educaram, e isso leva-nos a ver nessas mesmas pessoas um conjunto de coisas, de comportamentos e formas de estar que não queremos em nós.
É assim que iniciamos, muitas vezes, um caminho de divisão e de separação de nós mesmos, sem perceber sequer que o estamos a fazer. Concentramos os nossos esforços em tentar ser uma coisa diferente daquela que vemos nesses mesmos ser, lutamos contra essas naturezas, mas esse foco leva-nos a não compreender que quanto mais o fazemos, mais neles nos transformamos. Da mesma forma que, quando conduzimos, devemos ficar focados no nosso carro e na nossa viagem, e isso permite-nos intuir e “ver” os movimentos que existem à nossa volta, e que quando nos focamos num carro ao nosso lado, ainda que nos pareça que estamos a manter o nosso rumo e o volante direitinho, na verdade começamos a dirigir-nos numa trajectória contra esse carro, também na vida, quanto mais nos focamos no que não queremos, quanto mais esforçamo-nos para não sermos uma determinada coisa, mais nos aproximamos, verdadeiramente dela, dessa forma de ser e desse comportamento.
Quando procuramos não ser algo que vemos nos outros, na verdade, temos mais deles do que sequer imaginamos ou queremos admitir. Essa fuga leva-nos a perdermos o nosso potencial, a restringir a nossa luz, a largar o nosso poder. Se um espelho desta natureza nos é oferecido, é porque há um processo que precisamos de fazer, o de entender que a herança que recebemos do outro não vem formatada, mas sim em estado puro, em potencial energético, mas que quando focamos a nossa energia em não ser esse outro, em não manifestar duma maneira que reconhecemos nesse ser, estamos a carregar essa energia com a mesma polaridade, levando-nos, invariavelmente, a repetir padrões e a ser tudo aquilo que não queríamos, de forma alguma, ser.
A vida dá-nos estes espelhos para que possamos ver para além da matéria e das escolhas pessoais, para que possamos compreender que há um potencial intrínseco, que tudo o que existe pode ser vivido, trabalhado e manifestado mediante diversas perspectivas e focos. Em última instância, podemos vivê-la numa manifestação luminosa ou numa manifestação de sombra, mas também é verdade que não podemos reconhecer uma sem a outra. Assim como a árvore coloca as suas raízes profundas na terra e a partir delas se ergue, também nós precisamos de honrar as nossas origens, o que nos gerou e nos deu o nosso mais bem precioso, a vida, para nos podermos erguer em quem verdadeiramente somos.
Com esta consciência, aceitando e trabalhando aquilo que nos deu forma, conteúdo e identidade, temos a capacidade de assumir, verdadeiramente o nosso caminho, sem medo de nos tornarmos em algo que nunca, pela nossa própria natureza, poderíamos, alguma vez, ser. É esse foco, que parte do nosso centro, que nos auxilia a lapidar a pedra e polir o diamante que nos habita, reconhecendo o seu verdadeiro brilho, o seu enorme valor. Não podemos olhar a borboleta e ver a totalidade da sua beleza sem reconhecermos que ela provém da lagarta que ela também é, que essa mesma lagarta foi gerada por outras borboletas que, antes dela, também se manifestaram nas suas essências e deram-se ao propósito de elevar a vida através da nova vida. No fundo, também é isso que nos é pedido, uma transformação total, que não pode ser apenas na forma, mas que tem de vir de dentro, do conteúdo, do conceito, do potencial, como a estátua que nasce da pedra tosca pelas mãos da consciência que é o escultor.
Leonardo Mansinhos

