De tempos a tempos somos chamados a mergulhar dentro de nós, a encarar os nossos medos, a abrir feridas para as limpar, purificar e, finalmente, as curar. Os momentos que vivemos, e que ainda nos esperam durante os próximos meses, estão a dar-nos a oportunidade de o fazermos e a pedir que nos entreguemos a esses processos profundos, pois, invariavelmente, com mais ou menos dor, teremos mesmo de o fazer. Júpiter entrou ontem no signo de Escorpião, e ainda que esse não seja o tema desta reflexão, é ele o grande motivador desta vivência profunda que nos irá acompanhar durante os próximos meses.
Como muitas vezes refiro, olhar para dentro de nós é uma das mais árduas tarefas que enfrentamos enquanto seres humanos. As grandes (e também as pequenas) histórias falam-nos desse processo doloroso, desafiador, mas transformador, que é mergulhar dentro do que está guardado em nós, trazer ao de cima aquelas coisas mais feias e, delas, extrair um tesouro. Contudo, como em todas as histórias, o herói não é herói sem o fazer, e nós, enquanto almas, não subiremos mais um degrau na evolução do nosso espírito sem, também, o realizar.
O mar, como nós, apresenta-se calmo e límpido, e ainda que por vezes esteja um pouco mais revolto, com ondas maiores e um pouco mais de espuma, as marés fazem questão de tudo reorganizar. Quando avançamos no mar, saímos para fora de pé, e a clareza que até ali permitia-nos ver tudo, a pouco e pouco vai desaparecendo, levando-nos até lugares onde o fundo é cada vez menos visível, até, na verdade, chegar ao momento em que não mais temos noção de onde há terra e o que ela, lá no fundo, contém.
Da mesma forma, em nós, a face visível esgota-se quando nos confrontamos com as nossas emoções mais profundas, as mais belas e as mais assustadoras, quando os medos vêm ao de cima, quando os potenciais se revelam à nossa frente e hesitamos, com o peso da responsabilidade, da autoexigência e da autocrítica, com as regras, normas e estruturas que a sociedade nos coloca, através das instituições, mas também da educação, da moral e das bases ideológicas. No entanto, há também um momento em que tomamos consciência que sem entrar nessa zona mais escura e densa, não temos qualquer hipótese de encontrar aquela parte que nos falta, de colmatar aquele vazio que, a partir dum determinado momento, se torna muito maior que a nossa existência.
No fundo do nosso mar sentimos todas essas coisas, ele invade-nos, pressiona-nos, limita-nos, pois nele lidamos com a profundeza de tudo o que em nós existe, de tudo o que está guardado e registado, desde as memórias e sentimentos mais recentes, até àqueles que pertencem à nossa ancestralidade e ao percurso das nossas vidas. Então, os nossos movimentos têm de se tornar lentos e cuidadosos, ainda que muito mais fluídos. Quando aprendemos a nadar na profundeza do nosso mar, tomamos o gosto duma certa velocidade, queremos logo dominar tudo, desperdiçamos energia e tantas, mas tantas vezes, arriscamos afogar-nos em nós mesmos.
Encarar e enfrentar a profundeza do nosso ser implica estar preparado para ver-nos das formas mais horrendas e assustadoras, aceitando, amando e integrando todos aqueles monstros que, ao longo dos tempos, foram crescendo dentro de nós, compreendendo que muitos deles apenas são monstros porque a sua forma é estranha, porque a maneira como se apresentam é agressiva, reflexo duma defesa constante, mas que, por dentro, contêm a nossa doçura primordial, aquela que foi retirada à criança ferida, magoada, abandonada, que precisa de ser curada, acarinhada e elevada.
Mergulhar nas nossas águas profundas pode ser doloroso, mas é, sem dúvida, essencial, e pede que o façamos em consciência, em entrega, em total rendição. Muitas vezes, entramos nessas águas apenas ao de leve, outras vezes de olhos fechados, e achamos que já fizemos o trabalho todo, mas, mais tarde, somos novamente invadidos pelas revoltas águas e, de forma mais dolorosa, lá temos de ir ao fundo. Contudo, quando o fazemos de coração aberto, há uma luz dentro de nós que tudo ilumina, que revela as pérolas escondidas, os tesouros cheios de limos que podemos, apenas dessa forma, trazer até à superfície, limpar, polir e revelar ao mundo a sua beleza.
Leonardo Mansinhos