Uma das grandes e poderosas bases, porém bastante pesada e negativa, de construção da nossa sociedade e da nossa identidade é a culpa. Todos nós crescemos com a imposição, mais ou menos consciente, desse peso, nomeadamente através da profunda conceptualização do que é certo e do que é errado, do condicionamento da nossa própria natureza humana, dum carregar duma vivência de obrigação e responsabilidade que activa os nossos processos de auto-exigência, auto-punição e de sobrevivência, impedindo-nos de revelar quem somos, de mostrar a nossa verdadeira individualidade, a nossa Centelha Divina.
A culpa ganha forma através do medo, alimenta-o e dele se alimenta também, criando um círculo vicioso duma energia negra, tornando-se assim uma arma de submissão, de condicionamento, de castração profunda. É o medo, como a ausência de amor, que dimensiona a culpa e dela retira proveito, que diminui a luz do nosso espírito e nos densifica, como uma barreira que se forma à manifestação da maior beleza da nossa existência. É através do medo sobre nós imposto, condicionando atitudes e pensamentos, como um véu que cobre o nosso discernimento, que nos diminuímos enquanto expressão divina na Terra, densificando-nos e, no fim, destruindo-nos.
No entanto, essa construção de nós mesmos é um grande desafio à manifestação de nós mesmos. Para nos libertarmos da culpa, necessitamos de voltar à nossa essência, ao nosso coração, trazendo até nós a expressão de um amor profundo sobre quem somos, em tudo o que somos, incluindo o que consideramos falhas, que nada mais são que o sublime e precioso emanar da nossa humanidade, da sua perfeição imperfeita. Quando voltamos ao nosso coração, quando agimos em amor e em consciência, até aquilo que, em muitas situações, pode parecer “errado”, tem a sua razão de ser, tem uma função e um propósito, tornando-se, de alguma forma, “certo”. Contudo, esse trabalho implica uma enorme e profunda entrega a nós e ao outro, uma vivência baseada naquilo que é a maior forma de dádiva de um ser humano, o agir com o coração.
É preciso, por isso, coragem para nos libertarmos da culpa, pois ela é como aquelas silvas nos filmes animados crescem de forma desproporcionada, impedindo o herói de chegar ao seu destino, que metem medo pela escuridão que vão gerar, que obrigam a uma atitude concreta, forte e decidida. É a coragem o grande mote da verdadeira libertação dessa energia que nos envolve, que nos diminui, que nos fecha e tenta apagar a chama da nossa Centelha Divina. Agir pelo coração, a expressão da Coragem, implica abrir esse mesmo coração ao amor, desde a sua expressão mais terrena até à mais divina, para nós e também para os outros, permitindo-nos receber o que até nós chega da forma como realmente tem de ser e não pela maneira que nos foi conceptualizada e incutida.
Abrir o coração é, também, aprender a viver no agora e não na consequência de um determinado acto, trazer o racional e o emocional em cada um dos nossos passos, gerando vivências em consciência. Quando nos é colocada uma constante dimensão de culpa, quando nos é incutida uma necessidade de vigiar, racionalmente, cada um dos nossos actos e pensamentos, quando nos colocam a exigência de sermos algo que é esperado sobre nós, a nossa individualidade fica desaparecida, apagada, diminuída. Isso faz com que não consigamos ser livres em nós mesmos, com que não consigamos expressar a mais profunda beleza de tudo o que somos, do toque divino que cada um de nós se predispôs a realizar neste plano.
No fundo, o primeiro passo da culpa é a diminuição (ou até mesmo extinção) da nossa chama, do nosso brilho, da nossa identidade, e, por isso, ela é-nos incutida desde o início da nossa existência como seres, através da ameaça de um castigo profundo, manifestado desde as coisas mais concretas até ao mais metafísico. O pecado leva-nos ao inferno, a falha leva-nos à incompetência, mas ambos os pontos esquecem-se que cada um de nós é a expressão do Divino na Terra e, como tal, isso só pode ser verdade quando existe uma deturpação do nosso próprio conceito de existência.
A culpa instrumentaliza-nos através do medo e da exigência, activa-nos a constante sobrevivência sobre tudo e sobre todos os nossos caminhos. Quando crescemos com a ideia de que nunca somos suficientes, com uma exigência constante de resultados que são esperados sobre nós, não nos podemos permitir relaxar, descansar ou baixar as defesas, temos de estar sempre em alerta, precisamos de estar sempre à espera da falha e do erro, em constante sobrevivência. Estes são os ingredientes para a incapacidade de expressão das nossas ideias, da nossa Verdade, da nossa individualidade, pois tal pode despoletar a crítica, a acusação, o julgamento, o castigo, a punição e a rejeição. No fundo, todos nós queremos ser aceites – e nada há de mal nisso –, mas, por isso, cumprimos o que é esperado de nós, na tentativa de não sermos abandonados, ostracizados, diminuídos. Contudo, é precisamente isso que acontece, mas não de fora, pelos outros, e sim partindo de nós mesmos, criando assim enormes problemas que, em última instância, chegam ao nosso próprio corpo físico.
É aceitando-nos e amando-nos profundamente que somos capazes de eliminar a culpa, e tal só pode ser feito quando somos muito tolerantes connosco, quando nos envolvemos de um enorme amor por cada partícula do nosso ser, quando nos permitimos ser nós mesmos. É essa vivência que leva à enorme celebração que é sermos quem somos, que nos permite ver a beleza que existe em tudo o que se passa nas nossas vidas, que permite, no meio de todo o caos, encontrar aquela partícula subtil que nos faz acreditar e ter esperança num amanhã maior. A culpa tolda-nos, baixa-nos a cabeça, impede-nos de criar uma visão de nós mesmos baseada na dimensão profunda do que é ser humano.
Contudo, é a celebração, no abraçar da nossa Luz e da nossa Sombra, a sua integração e respeito, que nos faz relembrar que o Sol que hoje se põe, trazendo-nos a noite, amanhã irá nascer e nos trazer o dia, uma nova esperança, um novo despertar. Contudo, se vivermos em culpa, o medo absorve-nos e passamos a viver uma noite perpétua, um inverno infindável, a destruição da vida. Celebrar é acender um fogo de artifício em nós que, como nas nossas festividades, tem mais expressão quando tudo parece mais negro e escuro, pois representa a libertação da maior e mais profunda beleza do nosso ser, que contagia e alimenta de vida, como uma chama acesa, ilumina e aquece tudo o que a rodeia.
Leonardo Mansinhos
Adorei!! 💖