Creio que um dos grandes problemas dos nossos tempos, e uma grande aprendizagem, é a dificuldade que temos de aceitar e vivenciar a responsabilidade pelos nossos caminhos. Durante muitos anos, habituámo-nos a entregar o nosso poder, assim como a resolução das nossas questões nos outros, nas instituições, nos governos, no presidente, no primeiro-ministro, no chefe, no patrão, nos pais, nos companheiros e companheiras, nos maridos e mulheres.
Hoje, vemos isso plasmado em todo o lado, fruto deste grande desafio que estamos a viver, que nos pede que mudemos a perspectiva sobre o nosso percurso, sobre a nossa vida, sobre as nossas responsabilidades. À nossa volta, a pressão que estamos a sentir, os problemas que estão a levantar-se e a revelar-se, mostram-nos que, mais do que nunca, há uma forte tendência para não querermos olhar para as questões de dentro para fora, com medo de vermos as nossas sombras, com medo de nos reconhecermos nos monstros que tanto acusamos como os grandes destruidores da sociedade, do mundo e do nosso tempo.
Mais do que uma vez, tenho vindo a referir que este é um processo que precisa de ser trabalhado no interior de cada um de nós, de forma a que a mudança se efective, se materialize, se manifeste. Quando olhamos para dentro, surge, nomeadamente nestes tempos tão desafiadores, a urgência de nos vermos, não só dum ponto de vista individual, do nosso caminho e das nossas escolhas, mas também como parte de um todo, duma comunidade, duma sociedade, duma nação, dum planeta. Essa visão, quando feita em consciência, de forma integrada, mostra-nos parcelas do nosso ser que activam processos pesados, como a visão das nossas falhas, das nossas fraquezas, das nossas culpas.
Então, é mais fácil projectar para fora o problema, e todos nós, sem qualquer excepção, fazemo-lo em diversos momentos das nossas vidas. É fácil projectar um problema sobre uma pessoa ou um grupo, sobre uma teoria qualquer de conspiração ou uma ideia alimentada ao longo de tempos e gerações. Procuramos incessantemente um messias que nos venha salvar, pelo que, da mesma forma, o diabo também está fora, e não dentro de nós.
Reclamamos que as coisas estão desorganizadas, que não há foco nem método, que nos pressionam, que há muita injustiça no mundo, mas talvez seja altura de mudarmos o foco da nossa visão e posicionarmo-nos sobre a nossa vida. Se nos faz confusão o facto de haver muita desorganização, porque não começamos por organizar as nossas vidas, as nossas casas, as nossas coisas? Se mexe connosco que os responsáveis não estejam a tomar precauções sobre determinados temas, porque não olharmos também para a nossa própria postura perante temas equivalentes em nós? Se procuramos tanto revelar as verdades das coisas ocultas que se passam neste mundo, porque não começarmos por olhar para as coisas ocultas que se passam em nós?
Com este raciocínio e esta postura, torna-se progressivamente mais fácil fazermos algo que é, a meu ver, um dos grandes processos deste tempo, o sabermos estar no lugar do outro, o criarmos verdadeira conexão, o compreendermos as acções, ideias e propósitos. Isto não significa, ao contrário do que muitas vezes se crê, que aceitamos ou compactuamos! Significa, sim, que somos capazes de nos mantermos lúcidos e conscientes perante uma situação, afastando-nos duma necessidade instintiva de defesa e de imposição duma verdade. Quando nos permitimos este centramento, deixamos de alimentar o problema e passamos a construir uma verdadeira resolução.
Este processo não é fácil, mas está longe de ser impossível, e acredito que seja um dos grandes chamados deste tempo, tão marcado pela manifestação cada vez maior da evidência dos nossos mecanismos de sobrevivência e de controlo, que nos levam a uma autoexigência, quase como uma forma de purgar algo, quem sabe até as nossas próprias vivências internas (e muitas vezes invisíveis) de culpa. Com esse sentido, passamos a vibrar numa busca incessante das culpas e dos culpados, quase exigindo verdadeiros autos-de-fé sobre os visados.
Contudo, o que é preciso percebermos é que quando deixamos de vibrar na busca pela culpa, buscando a verdade, nos seus mais diversos sentidos, limpamos também os nossos próprios focos, aligeiramos o nosso coração e elevamos a nossa própria consciência. Esse trabalho auxilia-nos em alguns dos processos mais fortes e difíceis que estes tempos nos pedem, os imensos perdões que precisamos de fazer, o aligeirar dos mecanismos de controlo e defesa, de autoexigência, o trabalho de aprendizagem de recebimento, de celebração e de merecimento.
No fundo, este é o tempo que nos pede para aprendermos a viver no aqui e no agora, largando essas projecções constantes e assumindo o nosso verdadeiro poder. Tal só é possível quando compreendemos que, directa ou indirectamente, todos estamos ligados, tudo foi, e é, construído com um pedacinho duma escolha nossa, em algum momento, sobre alguma situação. Isto não significa que temos agora de nos castigar pelos males do mundo ou sentir em nós o peso de todos os problemas que este planeta, ou simplesmente, a nossa vida, tem. Significa, sim, que podemos olhar para tudo duma forma diferente e perceber, não a culpa, mas sim a responsabilidade, e essa é uma estrada de duas vias, pois se ela nos coloca no problema, também, e com muito mais força, nos coloca como parte da solução.
Podemos pensar que somos insignificantes, que não temos expressão, que somos apenas um, mas a verdade é que basta um somatório de “apenas uns” para criar problemas, assim como, da mesma forma, basta isso mesmo para criar soluções e uma nova realidade. No entanto, para tal se processar, temos de compreender o nosso poder pessoal, assumi-lo e expressá-lo, em respeito profundo pelo poder do outro, partilhando desse poder com todos os que nos rodeiam, de forma justa, e, nesse mesmo sentido, unirmos esses poderes para, conscientemente, transformarmos a vida e o mundo. Nestes tempos, se não o fazemos, outros o farão por nós, viveremos, noutro sentido, numa nova entrega do nosso poder a supostos messias e emissários duma verdade, muitas vezes oportunistas que nos dizem o que queremos ouvir, que nos activam as necessidades de justificação e de encontrar culpados e responsáveis.
O tempo que vivemos pede este forte foco em nós mesmos, este centro, esta descoberta maravilhosa de que em cada um de nós existe um Mestre da sua própria vida, um coração que pulsa, uma fagulha do Espírito. Com este reconhecimento em nós, temos a capacidade de o fazer perante os outros, olhar, aceitar e respeitar profundamente o Mestre que o outro é, percebendo o seu lugar na nossa vida, na nossa sociedade e no nosso mundo, ligando os laços que precisam de ser conectados e desligando as fontes de usurpação de energia, de vida e de poder, as dependências e as carências, reorganizando-nos neste grande xadrez que é o mundo e a vida.
Leonardo Mansinhos