Estes dias são, para muitos, de festa, de folia, de animação e diversão, uma forma de espantar um pouco as questões do dia-a-dia, os problemas e preocupações. Contudo, depois de um eclipse do Sol no passado domingo, tão forte e intenso, a energia nos céus destes dias vai continuar carregada em signos de fogo, nomeadamente em Carneiro, levando-nos, num lado mais prático e directo, a excessos, a atitudes mais violentas, menos tolerantes, a uma certa tendência para acidentes e faíscas. No entanto, por outro lado, num plano mais subtil, toda esta energia tem um enorme reflexo na busca pela própria identidade, pela individualidade, pelo Eu.
Pensar em Carnaval é pensar nas máscaras e nas fantasias, formas de encarnar, ainda que temporariamente, um outro Eu, muitas vezes exagerado ou excessivo, liberto de restrições. No fundo, é, de certa forma, o passar de um extremo ao outro, das barreiras e restrições que a sociedade e a vida nos impõem, que limitam a nossa identidade, para uma liberdade, uma nova forma de ser ou de estar, que nos leva para além do que é esperado de nós, ainda que dentro dum determinado limite.
Todos nós, no nosso quotidiano, na nossa vida, temos tendência a usar máscaras, a moldar-nos a determinadas situações, a determinadas exigências da sociedade, do trabalho, da família. Se tal não é fortemente problemático, complexo é quando, de tanto usarmos essas mesmas máscaras, esquecemo-nos do que elas são, passando a assumi-las como a nossa própria identidade, ficando, ainda que nem sequer tendo noção de tal, presos ao que, um dia, usámos como forma de nos libertarmos.
As nossas máscaras são reflexos do ego, das suas necessidades de aceitação, de sobrevivência, que intensificam os nossos vazios, as nossas carências, medos e zonas de conforto. Como forma de protecção, criamos traços de identidade que, com o tempo, substituem a nossa própria individualidade, tomam controlo sobre o nosso ser e, como uma sala escura e fechada, enclausuram-nos numa prisão construída por nós mesmos. No entanto, há momentos em que o nosso Eu, uma pequenina chama escondida nessa escuridão imensa, começa a fazer-se notar, trazendo um desconforto que pede acção, que pede reconhecimento de nós mesmos e o quebrar desses padrões que fomos alimentando.
Um momento como este que vivemos, em que a intensidade energética, muito alimentada pelo fogo e pela água que nos céus dominam, nos faz sentir tanta coisa, nos faz questionar outras mais, tem como grande propósito focarmos o nosso olhar em nós mesmos, em quem somos, em quem temos sido, em deixar cair as máscaras e assumir o nosso Eu. Rasgar as máscaras não é assumir revoltas nem rebeliões, alimentar atitudes intempestivas ou ir contra tudo e contra todos, pelo contrário, é mostrar que quando eu sei quem sou, quando assumo a minha verdadeira identidade, não preciso dessa energia que contém uma certa violência no seu modo de ser, pois a paz que me habita é maior que toda e qualquer tentação de cair na batalha e na guerrilha.
Mostrar o nosso Eu é, verdadeiramente, escolher viver nessa paz que encontramos quando percorremos o nosso caminho, quando somos genuínos, quando mostramos o que está dentro de nós, quando choramos, rimos, abraçamos, sentimos a tristeza, a alegria e todos os outros sentimentos, simpáticos ou menos bonitos, sem medo do que eles vão mostrar de nós, sem medo do que os outros irão pensar de nós. Na realidade, apenas quando deixamos cair as nossas próprias máscaras é que somos capazes de transformar uma aparente fragilidade num poderoso escudo, somos capazes de compreender que a vulnerabilidade não é algo mau ou negativo para nós e que, pelo contrário, ela é uma autenticidade que nos protege e defende, como um escudo invisível e impenetrável, que depende unicamente de sermos nós mesmos em cada momento das nossas vidas.
Leonardo Mansinhos