Há uma espécie de vício presente no ser humano que nos últimos tempos parece vir a acentuar-se, um comportamento resultante da forma como nos temos construído enquanto sociedade, enquanto indivíduos, de como nos colocamos perante nós mesmos. Tornou-se mais fácil apontar o dedo, acusar, arranjar desculpas e descartarmo-nos das responsabilidades que, invariavelmente, estão nas nossas mãos, do que assumir, abraçar, trabalhar e curar. Tornou-se mais fácil espelharmos nos outros aquilo que em nós preferimos não ver e descarregar onde conseguimos as nossas frustrações, mágoas e dores.
Existe um trabalho ainda muito profundo que a humanidade necessita de fazer e que estes últimos anos tem vindo, de forma muito intensa, ainda que, ao mesmo tempo, sublime, a trazer ao de cima. Todos os avanços das últimas décadas, todo o desenvolvimento pessoal, tecnológico e até espiritual, têm-nos ajudado em muita coisa, mas, como um pó que varremos para debaixo do tapete, há alguns temas da nossa história comum que ainda nos atormentam, que estão gravados em nós, ainda que nunca, pelo menos nesta vida, os tenhamos vivido e deles sejamos directamente responsáveis.
Toda a violência, todo o sangue derramado, de ser humano para com ser humano, é um peso que ainda, socialmente e enquanto humanidade, continuamos a carregar, e a prova disso é um retorno recente ao tema do colonialismo, da escravidão, do racismo e antissemitismo, que tem levado a, mais uma vez, diversas e inúmeras acusações, assim como a acções que não esperávamos voltar a ver. De forma mais global e profunda, creio que todos os temas da nossa história têm um ponto de acumulação no último século que ainda não está devidamente trabalhado por uma enorme e massiva parte da humanidade, nomeadamente com a última grande guerra e de tudo o que nela foi vivido, desde a sua origem ao seu final.
Foi nesse ambiente pós-guerra que construímos uma sociedade baseada no medo de voltar à fome, ao conflito e à destruição. Dessa forma, esforçámo-nos para dar aos que chegam depois de nós tudo o que não tivemos e, assim, criámos um problema que começa a ganhar proporções demasiado grandes. Habituámo-nos a fugir das nossas responsabilidades globais, sociais, humanas. Com uma enorme facilidade viramos a face a alguém que, na rua, nos pede, com um olhar sincero e genuína necessidade (e todos nós temos a capacidade de compreender, de sentir, quem realmente precisa), mas rapidamente vamos para as redes sociais, atrás dum computador ou de outro aparelho, mostrar a nossa indignação e acusar os governos, aquela ou a outra pessoa, seja do que for.
Deixámos de nos ver como uma comunidade e tornámo-nos, fruto duma filosofia absurda de competição e da lei do mais forte, egoístas, autocentrados, verdadeiras ilhas isoladas. O resultado tem sido que, perante os nossos desafios, aqueles que vão mexer com aquilo que identificamos como os nossos defeitos, as nossas falhas, tornou-se mais fácil apontar o dedo e acusar, aproveitando-nos da fraqueza do outro e ficando com a sua energia, pois, na verdade, isto nada mais é do que uma questão de energia e de poder. O pior é que, facilmente compreendemos que somos vítimas de um sistema de poder descompensado, mas recusamos o facto de sermos também os carrascos desse mesmo sistema.
Tudo o que existe à nossa volta e nos incomoda, nos irrita, nos deixa desconfortável, é um espelho de quem somos, da construção do nosso Eu terreno, do desafio que aceitámos ao vir à Terra num projecto de evolução e crescimento. Contudo, é mais fácil projectar, é mais fácil ficarmos agarrados às palavras dos outros, às promessas, às ilusões, do que nos colocarmos no centro das nossas vidas, do que nos colocarmos em causa e termos a coragem de olhar em frente, pois a nossa alma sabe perfeitamente que quando assim o fizer, quando vir todas as sombras que a rodeiam e elas mexerem com o nosso ego, vamos estar simplesmente a ver o que existe no outro que também é nosso, parte dum cordão invisível e indelével, que nos une a todos, como uma grelha magnífica e poderosa.
O que muitos de nós ainda não percebeu foi que, assim como o efeito dum despertar, dum assumir de responsabilidades, leva para o outro uma corrente de amor, de compaixão, de perdão, que nasceu em nós mesmos, que habita primeiro em nós e, só depois, vai para o outro, da mesma forma, um fugir de nós mesmos, um acumular de mágoas, raivas, ódios e rancores, sobre alguém em específico ou sobre, simplesmente, o mundo, com todas as suas “injustiças”, libertam uma corrente de discriminação, de medo, de guerra, de radicalismo. Por isso, é preciso compreender que todas as guerras que hoje se vivem neste mundo, todos os radicalismos, todo o medo, nasceram e amplificaram-se em cada um de nós, fruto duma semente plantada que todos os dias alimentamos, que todos os dias damos força, fugindo de nós mesmos, vivendo as guerras interiores, deixando-nos consumir pela inveja, pelo poder e pela nossa própria sombra.
A compreensão do espelho que cada um, individual e colectivamente, significa para nós, é também a aprendizagem da humildade de reconhecermos as nossas sombras e nelas mergulharmos, trabalharmos e elevarmos através da Luz que sabemos existir em nós. Esse é o tema que a energia de Virgem, que agora temos a possibilidade de trabalhar, nos vem ensinar, e é esse o profundo desígnio que nos tem vindo a ser pedido, o de voltarmos à nossa essência, de aprendermos novamente a respeitarmo-nos, corpo, alma e espírito, pois só dessa forma teremos a capacidade de respeitar o outro na sua plenitude. Quando assim o fizermos, compreenderemos também que todos os ódios que existem no mundo são reflexos de um medo profundamente enraizado que precisa de ser curado, duma essência que, na realidade, a única coisa que precisa é de amor.
Leonardo Mansinhos