A vida nos tempos que correm, e desde há algumas décadas, para não dizer séculos, pede-nos apenas que existamos. Como parte dum sistema, somos muitas vezes formiguinhas, obreiras de toda uma sociedade, estruturadas e formadas para, ainda que com uns afagos de ego e promessas de importância e de sermos peças-chave de um todo, alimentarmos e mantermos toda a máquina a funcionar. Ideologias à parte, todos fazemos parte desse mesmo sistema e necessitamos dele, pelo que existir nele, em tudo o que somos, é essencial, não para o sistema em si, mas para a nossa própria evolução. O grande problema é que, maior parte das vezes, mantemo-nos numa simples existência, sem termos consciência de quem somos e de qual o nosso papel.
Existir e ser são duas coisas bastante diferentes, ainda que estejam ligadas. Maior parte de nós, no seu ritmo normal de vida, nas rotinas do dia-a-dia, uma vida inteira, apenas existe. Peões dum xadrez perpétuo, vamos cumprindo o nosso papel, mantendo-nos integrados, contribuindo activa, mas não conscientemente, para o funcionamento de tudo. No percurso final da nossa vida, cansados de passar mais de metade do tempo que este corpo nos oferece entre sermos crianças, estudar, arranjar emprego, constituir família e tudo o resto, aproveitamos duma suposta reforma e, aí sim, muitas vezes, apenas passar a existir, como um incómodo número numa sociedade que não sabe lidar nem viver com aqueles que não geram directamente riqueza.
Se existir é muito fácil e não pede sequer que façamos algo de especial, ser, pelo contrário, é muito difícil. Ser exige uma tomada de consciência de quem somos, um mergulhar dentro de nós e um voltar ao centro das nossas próprias vidas. Ser implica assumirmo-nos como monarcas de nós mesmos, do nosso caminho, da nossa vida, resgatando o nosso poder pessoal, compreendendo que, embora integrados num sistema e necessitando dele, não deixamos de ter a capacidade de definir o nosso caminho, trabalhar para o concretizar e defender esse caminho, independentemente de ele até poder estar errado. É nestes pontos que está um dos grandes problemas dos nossos tempos. Cada um de nós tem esse poder de definir o seu próprio caminho, é um facto, mas poucos têm consciência disso, e, pasme-se, uma grande parcela do problema e da responsabilidade não está no “inimigo” de sempre, a sociedade, a educação, o sistema, mas sim nós mesmos.
A questão principal é que, como seres humanos que somos, embrenhados nas suas questões e moldados pelos seus percursos, temos zonas de conforto muito fortes e somos profundamente avessos à mudança. Isso leva-nos a considerar, a “achar”, que quem tem a responsabilidade e a obrigação de nos dar oportunidades, de criar condições para nós, é esse mesmo sistema, é o governo, o país, o mundo. Quando assim o consideramos, colocamos em tudo o que exterior algo que só pode ser trabalhado no nosso interior, o nosso próprio poder, e tornamo-nos marionetas dessas mesmas entidades. Não, não são só questões de sociedade, política, economia e afins, não é preciso ir-se tão longe, podemos ficar pelas nossas relações familiares, de amizade ou amorosas, e tudo isto é a manifestação duma realidade.
Ser implica tomar consciência de que, efectivamente, existimos, mas que somos muito mais do que meros peões, de que temos um papel activo em tudo o que nos rodeia, mas que tal só pode ser manifestado quando, dentro de nós, assumimos a responsabilidade de quem somos. Se não o fazemos, vamo-nos sentir injustiçados e revoltados, vamos ser reactivos e impulsivos, vamos perder a noção de que o mundo exterior não muda por autorrecriação, mas sim porque nós mudamos, porque nós nos permitimos ver, compreender e alterar o que era necessário, gerando um reflexo para o que está fora, plantando uma semente, transformando o exterior na mesma proporção, sempre, da transformação interior.
Quando nos propomos a ser, para além de simplesmente existir, resgatamos um poder pessoal, sim, mas fazemos muito mais do que isso, acendemos uma chama, erguemos uma tocha e contaminamos positivamente o mundo que nos rodeia. Ser é sair das trevas sem as renegarmos, sem as tentarmos eliminar, integrando-as, compreendendo-as e assumindo-as como uma parte da nossa existência. Contudo, muitas vezes (para não dizer sempre), somos levados a nos dividirmos ainda mais, na constante guerra entra a luz e a sombra, entre o suposto bem e o suposto mal, fazendo com que a existência implique estar num dos lados da barricada, tornando o outro inimigo, amplificando fossos, quebrando a capacidade de assumirmos a individualidade do que é ser, aceitá-la em nós e nos outros e extrair o que de melhor existe nela.
O mundo em que vivemos e o tempo que estamos a construir implica que cada um de nós, simplesmente, se proponha sair da existência, abraçando o conhecimento e a consciência do seu ser. Na prática, e de forma muito simples, isso implica que cada um de nós mergulhe em si, se descubra e se conheça, se permita ver a luz e a sombra que o habita, se permita cair e levantar, burilando a pedra que é para resgatar o diamante que em si existe. Quando cada um de nós faz este percurso, em consciência, não tem medo de que o outro faça o mesmo e, pelo contrário, incentiva-o, motiva-o a dar esse passo. Se todos o fizermos, crescemos, desenvolvemos, assumimos o nosso ser e, assim, elevamo-nos em consciência, caminhando para aquilo que é a verdadeira ascensão, que não é, no imediato, um fenómeno místico, mas sim um despertar que nos leva à verdadeira humanidade.
Leonardo Mansinhos