O mundo deveria ser das coisas simples. De banhos de mar ou de gotas de chuva, que nos acordam o rosto, em dias cinzentos. De beijos roubados após gestos consentidos e de gargalhadas, daquelas fortes, que às vezes nos fazem doer a barriga.
Neste mundo simples, cabem também as coisas que, por vezes, chamamos de supérfluas. O conforto de pés quentinhos num sofá novo e extra macio. A visão da despensa cheia, enquanto o refogado nos invade a cozinha. O cheiro do perfume que inebria sentidos e nos relembra identidades, tal como aquela música que subitamente escutamos e nos relembra de um eu esquecido, em indeterminado tempo.
Somos nós que somos das coisas ou são as coisas que nos ajudam a sermos melhores? Temos, só por ter e para mostrar aos outros que somos grandes ou somos grandes, porque o que temos nos faz experimentar e ajudar no que viemos, por aqui, ser?
É dado garantido que, muitas vezes, compramos estilos de vida em formato de produto. Que comparamos datas de carros recém-adquiridos na conclusão de que somos melhores porque o que é meu é mais recente que o teu. Existe também quem se envergonhe do que tem.
Na realidade, o que é que nos define? Somos porque temos? Damos valor e agradecemos? Seremos livres de escolher?
A liberdade inicia, acima de tudo, por se ser. Ser só pode manifestar-se através da nossa verdade e em essência. Que criará também as nossas necessidades reais. De nos expressarmos, sentirmos, vivermos. De experimentar uma realidade.
Na noção da verdade que somos, já não existe a necessidade de impressionar os outros. Queremo-nos impressionar. Com a certeza de que também o merecemos. Aquele banho quentinho. A lareira acesa, numa noite fria, enquanto se lê um bom livro.
As coisas supérfluas só o são se não lhes dermos valor. Se acharmos que somos mais só porque as temos. De não percebermos que todos, mesmo todos, temos direito a ter. De ser. Infelizmente, nem sempre é assim. Mas esse seria tema para outro artigo (muitos artigos).
O mundo deveria ser das coisas simples. De barrigas cheias. De olhos a resplandecer saúde. De noites bem dormidas em camas quentinhas. De sorrisos largos porque o amor é distribuído lá por casa. Da simplicidade que cada um chama para si e que dá combustível para se viver e partilhar experiências com os outros.
Nós somos o mundo. No mundo, o equilíbrio entre se ter e ser, nunca foi coisa simples.