Acredito que todas as grandes certezas, todos os grandes caminhos e todas as grandes descobertas vieram dum enorme e tremendo caos. Acredito que, muitas vezes, é preciso sermos totalmente tirados das nossas zonas de conforto, rasgados ao meio nas nossas convicções e certezas, colocarmos tudo em causa, para podermos ver tudo de uma forma diferente e criar uma nova realidade para as nossas vidas. É assim nas nossas vidas, é assim neste planeta, nas nossas sociedades e no Universo, assim como, quem sabe, também em todas as dimensões que estão para lá de nós.
Diz-nos a mitologia grega que Caos é um dos deuses primordiais. O conceito que a ele está associado, primariamente, não é o da confusão e da incerteza, mas sim o da cisão, da divisão, um princípio que está presente na formação de toda a vida, nomeadamente no plano celular. A partir da sua própria divisão, Caos criou os primeiros deuses e deu início a toda a vida. De forma diferente, outras mitologias e filosofias mostram-nos processos de criação que em tudo são semelhantes, que nos mostram que a criação e a evolução só são possíveis através da cisão, da separação, pois é ela que gera energia e faz com que a divisão não seja apenas um tornar-se dois, mas sim todo um processo que permite a transformação da própria realidade.
Nas nossas vidas, seja pelas situações que vivemos, seja pelas que nos são colocadas pelos outros, ou até mesmo pelo mundo que nos rodeia, muitas vezes o caos é instalado, tirando-nos o chão, deixando-nos confusos e perdidos. Na verdade, não há um qualquer ser nos céus ou noutro sítio qualquer a planear intensivamente situações difíceis e complexas para as nossas vidas, a tirar à sorte quem vai ser o premiado com um problema. Acredito sim que somos nós, nos nossos processos evolutivos, que criamos as condições para os pequenos e os grandes caos das nossas vidas, de forma consciente ou totalmente inconsciente, mas sempre com um sentido, o do cumprimento do nosso propósito de vida.
Quando somos confrontados com estas situações, quando nos apercebemos do seu impacto nas nossas vidas, o primeiro reflexo é o do desespero, pois o chão é-nos tirado, somos brutalmente afastados das nossas zonas de conforto, o medo instala-se e sentimo-nos perdidos. Somos, de repente, um joguete nas mãos de um universo, muitas vezes, cruel, que nos causa dor e dúvida. Assim o sentimos, principalmente no primeiro momento em que o caos se nos mostra. Como águas turvas, não sabemos se por baixo delas está clareza, tesouros ou monstros marinhos. Na verdade, por algum tempo nem sequer queremos saber o que lá debaixo existe.
O caos é o rasgar de um véu, que nos permite um vislumbre mais concreto e profundo da nossa realidade, quando nos permitimos também olhar para essa confusão instalada e, em paz, em calma, em serenidade e foco, distinguir os pontos de luz de toda a escuridão e confusão que envolvem o que à nossa frente se apresenta. É o caos que nos permite ver tudo como é, a caminho pelas nossas sombras, pelo nosso inferno pessoal, e resgatar a luz que existe dentro de nós.
Em todas as vezes que precisamos de evoluir, que precisamos de subir na escadaria do nosso propósito de vida, temos de nos confrontar com o caos que é a própria criação, com o elevar de um nada que é, na verdade, tudo, e compreender que só através dele, resistindo às forças profundas das trevas interiores com que tal processo nos envolve, é que poderemos ter a capacidade de poder dar uma nova forma às nossas vidas. O barro, antes de se tornar numa vasilha, é mole, uma massa disforme e cheia de água, água essa que permite o seu moldar. É nessa condição que o oleiro a amassa e a vai modelando, que a vai alisando, que lhe retira as imperfeições, até à forma final. É essa a água que depois irá sublimar-se e permitir que a vasilha ganhe a sua estrutura, se concretize e materialize.
Da mesma forma, o caos, como tudo na vida, pede amor, por nós mesmos, pelas situações, até por aqueles que nos trazem o mal, que nos invejam ou, por alguma razão, querem pisar-nos. Mais até do que as que nos querem bem, que nos ajudam a ganhar forma, são as pessoas e as situações que nos trazem o caos que necessitam dessa nossa água, dessas nossas emoções, desse nosso amor profundo, que purifica, que nos protege na jornada pela nossa sombra, pelas nossas trevas, que serve de archote para iluminar o caminho. Só assim podemos integrar o caos, respeitá-lo profundamente e amá-lo, para que nele possamos, também, encontrar uma fonte de vida e de co-criação da nossa própria realidade.
Leonardo Mansinhos