Diz-se, e muito bem, que o outro é um espelho de nós mesmos. Isto é uma enorme e importante verdade, sem dúvida, que traduz um essencial trabalho que necessitamos de fazer, constantemente, o de entender o que o outro nos traz, o que o outro, mesmo sem o saber ou sem qualquer intenção, nos oferece em cada interacção, em cada contacto. Quando conseguimos ter esta questão em atenção, temos a possibilidade de crescer, de nos desenvolvermos, de aprendermos muito sobre nós mesmos. No entanto, o outro traz-nos apenas uma parcela de nós, ensina-nos apenas uma parte, quando a queremos aprender. Há, na verdade, um outro trabalho, tão importante quanto este, que necessitamos de ter em conta.
Por estes dias, ao passar os olhos por uma rede social bem conhecida, um dos perfis que sigo, ligado à área da “espiritualidade”, com muitos seguidores que gostam muito de falar de amor e de luz, tinha partilhado uma imagem com uma citação, daquelas agora muito comuns e, até, muito interessantes como reflexão. A citação era, sem dúvida, preciosa e verdadeira, acutilante até. No entanto, a imagem era de um personagem de uma série de televisão, interpretada por Kevin Spacey, actor norte-americano que há pouco mais de um ano viu a sua carreira ser abalada por uma acusação de assédio a um jovem de 14 anos, uma situação com mais de 30 anos que despoletou um conjunto de novas acusações por parte de outros homens. Face a isto, a publicação desse perfil foi presenteada por uma série de comentários dos seus seguidores com um teor de muito pouco amor e luz.
Podia ser um caso isolado, mas, infelizmente, não é. Até é, na verdade, uma constante nas redes sociais, esta postura um pouco esquizofrénica, de gente que fala de amor, de luz, de Deus, de Jesus e de Buda, de meditação, Reiki e espiritualidade, de compaixão, perdão e vida, mas que, depois, noutras situações, julga, acusa, deseja a morte, fala de castigo divino e coisas afim.
Tão importante como esta noção de que o outro é nosso espelho, é também a compreensão e a tomada de consciência de que cada um de nós é, por si só, um espelho também, não só para os outros, mas também de si mesmo. Termos esta percepção sobre nós é tão reveladora que, muitas vezes, quando dela tomamos consciência, transformamos por completo as nossas vidas, mudamos comportamentos, atitudes e formas de estar, curando, até, muitas feridas que residem dentro de nós e que nem sequer tínhamos delas noção.
Falar de amor, de compaixão, de luz e espiritualidade pelas palavras dos Mestres e das pessoas que são para nós referências é fácil, muito fácil mesmo, mas o difícil é transformá-las em atitudes, em mudanças de postura, em tomadas de consciência. Da mesma forma, é fácil ver-nos através do outro, das atitudes que o outro tem para connosco, do que ele nos traz, pois esse é um espelho mais directo, de um mundo interior, sem dúvida, mas que facilmente atravessa os poros e chega ao exterior. No entanto, o grande desafio é conseguirmos ser observadores de nós mesmos, olharmos para o espelho profundo que as nossas atitudes mais instintivas, os nossos pensamentos e palavras imediatas, nos revelam.
Olhar para o espelho que nós somos é deitar abaixo as mais enraizadas e agarradas máscaras, é quebrar padrões mentais e emocionais que estão guardados profundamente em nós, é limpar feridas abertas que ultrapassam a nossa própria existência nesta vida. No entanto, isto implica sermos capazes de nos observarmos para além do exterior, aceitando-nos nessas falhas e fragilidades, reconhecendo-nos no nosso lado mais negro que, na verdade, é aquele que mais necessita de amor. Em cada um de nós, nos pensamentos mais pesados e sombrios, nas atitudes menos bonitas e saudáveis, existe um Eu que procura amor, colo e aceitação, que é o reflexo de anos e anos, quando não vidas, de dor, de sofrimento, de falta de amor e perdão e que, facilmente, encontra no mundo exterior uma forma de exteriorização e de revelação, como um grito de alerta e de desespero da Alma.
O outro não é apenas um espelho pelo que nos traz, é-o também pelo que nos activa, pelo que revelamos e tomamos consciência de nós através dele, mas esse só pode ser visto através dum olhar mais profundo, não em revolta, culpa ou crítica, nem em castigo, vitimização ou desculpa, mas sim em profunda vulnerabilidade, entrega e aceitação, em amor, compaixão e colo, muito colo. Olhar para o espelho que somos sobre nós mesmos é um acto de profunda coragem, sem dúvida, mas é também um acto de profundo amor, que pede a dignificação da perfeição que é a falha e a imperfeição, não como desculpa ou uma postura irresponsável, mas sim como o envolver de nós mesmos num abraço profundo para dar forças para o profundo trabalho de cura a que nos propusemos neste trabalho de encarnação.
Apenas dessa forma conseguimos apaziguar uma dor que, muitas vezes, nem sabemos que existe, pois cada pensamento de revolta e ódio, ou mesmo de crítica e julgamento, cada apontar de dedo contra o nosso semelhante pelas suas atitudes ou posturas, palavras ou expressões, é o reflexo de uma Alma que sofre, marcada por tantas e tantas coisas, muitas delas que nos passaram ao lado, que ignorámos ou que fizemos por serem esquecidas, que pede ajuda, que apenas, e unicamente, pede Amor. Quando olhamos profundamente para o espelho que nós somos sobre nós mesmos, por detrás das sombras e das névoas, se nos esforçarmos, se nos dedicarmos, vamos também ver um ponto de Luz, a fonte infinita de Amor que somos, pois essa foi a primordial dádiva do Pai, da Fonte, que trouxemos connosco para a Terra e a essencial que precisamos de revelar.
Leonardo Mansinhos