As últimas décadas, poderei dizer mesmo séculos, reconstruíram as nossas sociedades num plano muito ligado à matéria, mas associado a um exacerbar da racionalidade. Todo o crescimento das nossas sociedades, a todos os níveis, seja económico, político, social, científico ou de qualquer outra natureza, foi feito com a premissa da construção de estruturas, muitas delas ligadas a riqueza e posse, mas sempre vistas e vividas de forma profundamente racional. Contudo, hoje podemos compreender que essa racionalidade, na verdade, é apenas um suporte artificial e que nunca foi usada de forma produtiva e consciente.
A racionalidade que projectámos para a sociedade tornou-se, nomeadamente nos últimos anos, profundamente árida, infértil e destrutiva, algo que hoje podemos ver com alguma clareza. Como um vento seco que passa sobre a terra, há uma poeira que se levanta, que nos tolda a visão, que nos entope os pulmões, que nos deixa confusos e nos retira vida. No fundo, esse é o mote dos tempos que vivemos, tempos em que, curiosamente, e até este ano, têm sido pouco activados nessa energia do Elemento Ar.
Costumo referir que quando, num mapa astral, alguém tem carência de actividade dum elemento, muitas vezes, parece ter esse mesmo elemento em excesso. Parece um pouco contraditório, mas é muito simples de compreender. O facto de existir carência de algo que, na verdade, faz parte do nosso ser, faz com que sintamos que estamos incompletos, o que nos leva a procurá-lo fora de nós, de tal forma que ficamos reféns dessa mesma energia.
Estes tempos mostram-nos o Elemento Ar a ser activado nos céus, e isso poderá ser muito positivo, mas apenas se for acompanhado duma postura diferente, mais consciente e mais humana. Se observarmos o mundo que nos rodeia, podemos perceber essa dinâmica a existir, nomeadamente nos dias que correm. Como há algum tempo não víamos, há vozes que se querem fazer ouvir, há algo dentro de cada um de nós que precisa de se manifestar, sentimos a urgência de nos expressarmos, de trazermos os nossos pensamentos e ideias.
Por outro lado, é-nos também pedido para reaprendermos uma das nossas funções básicas, o respirar, algo que tão simbolicamente nos tem sido trazido nestes últimos dias. Quando o ar não flui, não nos alimenta devidamente, não nos dá os seus nutrientes, não nos traz vida. Não é uma máscara que nos retira essa capacidade. Na verdade, ela apenas evidencia aquilo que existe, as máscaras que temos constantemente colocado para tentarmos ser algo que não viemos ser, a nossa inconsciência da própria vida, como o simples acto de respirar ou o ritmo com que levamos as nossas vidas. Estamos tão apegados a elas que até, sem qualquer indicação nesse sentido, usamo-las sem necessitarmos.
É essencial percebermos que, se mantivermos um registo em termos da nossa vibração semelhante ao que já vivíamos, o que vamos viver, e que também já se manifesta no mundo de hoje, são explosões, são dogmas e verdades absolutas. Acção gera reacção e, nessa dinâmica, o que vamos potenciar não é o esclarecimento, a iluminação, mas sim o radicalismo, amplificando ainda mais a divisão que já existe, o eu contra os outros e os outros contra mim. Em vez de conciliar, de criar pontes, continuaremos a nos dividir, a levantar barreiras e muros, e em vez de resolver problemas, amplificamos os que já existem e até criamos novos.
A mente, para ser geradora de vida, necessita do coração, pois só assim pode gerar e abrir consciência. Sem o coração, a mente é apenas mais uma aridez e uma divisão, um potencial por explorar. Como a semente que é colocada na terra e não recebe água, mantendo-se apenas no potencial de uma planta, de uma árvore, de uma flor, dum fruto e da geração de novas sementes, a mente que não tem o coração como aliado, que não se inunda de amor, de sentimentos, de emoções, de tolerância, compaixão e cuidado, é apenas uma máquina, gerando coisas que funcionam no intelecto, mas que não têm qualquer projecção para a realidade ou para as verdadeiras necessidades do ser humano.
Mais do que nunca, arrisco dizer, é necessário o simples acto de abrir o coração, de receber em nós o outro na sua plenitude, na sua verdade, na sua beleza, sem perdermos a nossa própria identidade, o nosso próprio ser. É extremamente curioso que os tempos que vivemos, rodeados de um vírus ainda não integrado entre nós, obrigam-nos a uma retracção de algumas das atitudes que são (ou deveriam ser) básicas do ser humano, como o abraçar, como o acarinhar, como a proximidade. No entanto, tal não é uma perda da nossa liberdade ou uma restrição, é uma preservação da vida, um respeito pelo outro e um enorme convite a repensarmos a forma como nos damos e como estamos, também, na vida dos que nos rodeiam.
Abrir o coração é acarinhar, receber em nós o outro, dar um colo e receber outro em troca, é doarmo-nos em essência, é sermos genuinamente humanos, o que nos pede que saibamos olhar o outro com um profundo amor, talvez aquele que também deveríamos ter por nós. Acredito que toda a violência, discriminação e maldade têm como origem a falta de amor próprio, a falta de compaixão e respeito por si mesmo, a falta de colo e carinho. Contudo, acredito também que a resposta a esses actos não pode ser, em primeira instância, esse mesmo amor, colo e carinho. Primeiro é preciso quebrar o ciclo e, muitas vezes, para o fazermos, é preciso que haja um “grito”, uma atitude, uma mudança de postura.
Abrir o coração é também sermos capazes de nos vulnerabilizarmos, de nos doarmos de tal forma que nos tornamos uma fonte inesgotável, que nada do que nos tirem vai fazer falta, que não temos medo de ser magoados ou deitados ao chão. Como a água, quando nos vulnerabilizamos, temos a capacidade de nos transformarmos, de nos reajustarmos, de nos renovarmos. Por vezes, vamos cair, por vezes vamos vacilar e duvidar, por vezes até vamos levantar algumas barreiras, mas se trouxermos em nós esta ponte entre a mente e o coração, transformamos também tudo isso numa profunda vivência de amor, num bálsamo para as nossas feridas.
No fundo, nada mais precisamos do que curar os nossos corações, do que cuidar das feridas que nos acompanham, não só as individuais, como também as colectivas, as da humanidade, aquelas que nos acompanham por vidas e vidas, passadas de gerações em gerações. É também esse apelo de cura, de cuidado, de purificação, de profunda transformação, de resgate, que hoje ecoa pelo mundo e em cada um de nós, que nos toca de formas diferentes, que nos projecta para a responsabilidade da construção de um novo mundo, de uma nova realidade, que não será perfeita, é verdade, mas que é urgente. Nem todos irão despertar, nem todos irão mudar, nem todos irão abrir os olhos, e, na verdade, acredito que também não é isso que é esperado. Assim, um a um, se quisermos e se cada um tiver a coragem de fazer a sua parte, conseguiremos fazer a diferença. Esse movimento, na verdade, já se iniciou há muito tempo, e nem sequer nos apercebemos. Agora, só nos é pedido que continuemos o caminho.
Leonardo Mansinhos