Os últimos dias trouxeram-nos, uma vez mais, momentos difíceis, angustiantes e profundamente desafiadores. Lidamos novamente com a dor da catástrofe, da perda, sentimo-nos derrotados, deitados abaixo e desprotegidos, vivemos a dor, todos nós, pois seja nas nossas famílias ou através dos nossos amigos, há vidas ceifadas, há sonhos perdidos, há desespero e caos. Olhando as notícias, os comentários, as partilhas, vemos um espírito colectivo de muita revolta, dividido entre a tristeza e o impulso que a raiva e a dor instigam. Contudo, se é importante a vivência de tais sentimentos, também é importante não nos deixarmos consumir e destruir por eles e, com o tempo, torná-los na matéria que nos permite renascer.
É tempo de cuidar dos vivos e enterrar os mortos, assim já se dizia numa outra situação da nossa história, mas também é tempo de assumir as responsabilidades, individuais e colectivas, e tal nada tem a ver com culpas, com política ou partidarismos. Durante semanas a fio tenho referido e reforçado que é preciso olharmos para as nossas vidas, compreendermos o que temos feito individualmente, entender que somos parte da sociedade em que estamos inseridos, que somos parcelas deste mundo em que vivemos e que tudo o que existe à nossa volta é um reflexo do que vivemos dentro de nós. Não é qualquer tipo de vaticínio ou de profecia, é uma simples realidade que está ao alcance de qualquer um de nós, desde que estejamos dispostos a olhar para dentro de nós mesmos, algo que também tenho referido há semanas e semanas.
Durante muito tempo, demasiado tempo, desligámo-nos do rumo de parte das nossas vidas, entrámos em processos de sobrevivência, autogestão pura, não tomando decisões, não assumindo caminhos, simplesmente repetindo padrões atrás de padrões, culpando todos à nossa volta, os outros, os governos, o Estado, o mundo, mas nunca olhando para o que, na verdade, em cada momento, escolhemos para nós. Recordemo-nos que a não escolha é, por si só, uma escolha, e ao nos desconectarmos dessa parte das nossas vidas, desligamo-nos também do rumo que ela toma. Então, como diz uma frase que nunca me canso de relembrar, que tenho repetido também muitos nas últimas semanas, do livro “Alice no País das Maravilhas”, se não sabemos para onde ir, então, qualquer caminho serve.
Todas estas situações que temos vivido, seja directa, seja indirectamente, mexem com quem somos, mexem com as nossas crenças, com as nossas vidas, com o sentido que estamos a dar-lhes. Mesmo os mais resistentes, aqueles que continuam, teimosamente, fechados em castelos de pedra, sem portas nem janelas, pensando que estão protegidos contra tudo e contra todos, sentem os abalos que as situações trazem, sentem as réplicas, o grito da vibração emocional que tudo à nossa volta gera. No entanto, o que fazemos com tudo isto é apenas mais uma escolha nas nossas vidas. Se não quisermos continuar a viver estes despertares dolorosos e profundos, então temos de assumir a responsabilidade pelo caminho que fazemos, mergulhar nas tais sombras que tantas vezes refiro, limpar as feridas, reestruturarmo-nos e aprender com cada passo que damos. Se tudo isto tem a ver com as situações que, no país, temos vivido, ainda mais tem a ver com as nossas vidas.
Fugir de nós mesmos não pode continuar a ser opção, pois, invariavelmente, tal vai-nos levar a olhar para o lado e fomentar a inveja, a cobiçar do outro uma coisa que nem sequer sabemos se é para nós, mas que passamos a desejar, só porque o outro tem, sem perceber que a cada um pertence um caminho, que a cada um há um trilho para percorrer, e que cada um de nós só tem aquilo ao qual se dedicou, e mesmo que às vezes pareça que existam injustiças, a verdade é que mesmo a flor mais bela, sem ser cuidada, murcha e morre, que o terreno onde está plantada estiver podre, mais cedo ou mais tarde, essa flor não sobreviverá. Fugir de nós mesmos, das nossas responsabilidades perante a nossa vida, leva-nos também a apontar o dedo ao outro, àquele que “não está connosco”, àquele que não partilha das nossas crenças, que pensa diferente ou que exprime uma opinião oposta.
Assumir as responsabilidades pelas nossas vidas e pelos nossos caminhos é o que mais nos irá ser pedido nos próximos tempos, pois é a condição primordial para que possamos crescer e evoluir, para que possamos transformar o chumbo em ouro, a dor e a revolta numa paz profunda, numa aceitação e na compreensão dos nossos processos, permitindo-nos construir as bases para uma nova realidade, para o cumprimento do sentido das nossas vidas. Se nos deixarmos consumir pela dor, pela revolta e pela raiva, destruímos tudo o que existe de belo em nós e tornamo-nos, progressivamente, iguais a tudo o que nos causou tais sentimentos. Isto aplica-se ao que vivemos neste momento, sem dúvida, mas aplica-se, primeiro e principalmente, a cada situação das nossas vidas.
Leonardo Mansinhos